Cap. 3

Família

  Meu corpo todo doía. O chão estava realmente frio naquela manhã de domingo. Minha cabeça estava, bom, não estava. Parecia que haviam colocado uma bomba nela e explodiria a qualquer momento. O som do evento parecia uma caixa de abelha na minha cabeça, porém no fundo, lá no fundo eu conseguia ouvir alguém chamando meu nome.
- Pi – gritava Patricia, minha irmã caçula – Pi, acorda. Eu preciso usar o banheiro.
- Ah! Fala mais baixo Paty. Usa o lá de baixo. Sua irmã não está bem.
  Disse empurrando ela com uma das mãos que ainda havia força.
  Ela saiu correndo gritando “Papai, a Pi tá com anorexia”
  Eu sempre disse que televisão deixava a criança bitolada, ainda mais Paty que amava canais de saúde. Ela dizia que queria ser médica e dava um diagnóstico para todos. Lembro que uma vez, papai resolveu passar a máquina zero na cabeça. Ela passou o dia interior no quarto chorando, pensando que ele estava com câncer e que estávamos escondendo dela.

  Ouvi passos pesados vindo em direção ao banheiro.
  Seus braços me pegaram no colo e me colocou em minha cama. Consegui ouvi Paty dizer “obrigada papai”
  Eu sabia que aquele era o momento mais constrangedor da minha vida. Sentei na cama e o encarei.     Ele me dava um copo com água e um comprimido. Não havia expressão em seu rosto.
– Tome – disse sério – vai melhorar a dor de cabeça.
   Peguei sem dizer nada. Tomei e coloquei o copo na escrivaninha ao lado da cama.
   Fiquei de cabeça baixa não conseguia mais o encarar.
- Não vi a hora que você chegou ontem, Pietra – disse ainda sério, pude perceber que estava me encarando.
- Iria dá 3:00 da manhã.
- O filme foi meio longo né?
Rir.
- Foi sim – olhei para ele – bastante longo.
- Por que está fazendo isso?
- Fazendo o que?
- Acabando com sua vida. Você não é disso Pietra.
- Eu não fiz nada demais papai – disse irônica – eu apenas sai com meus amigos. O que se me lembro bem, você liberou isso com eles.
- Eu liberei? - perguntou confuso.
- Liberou. Ou você não lembra de ter liberado tudo e sem ter hora para acabar?
- Eu não liberei nada com eles.
- Para de mentir papai. Eles me contaram tudo e você também queria que eu saísse da minha rotina.Você concordou com eles sem falar comigo. Então eu fiz o que você quis. Eu me dei to-tal-men-te.
Quando me dei conta estava gritando, exaltada e ríspida. Até sentir o meu rosto arder. Ele havia me dado um tapa em meu rosto. O primeiro da minha vida.
- Nunca mais me chame de mentiroso ou altere o seu tom de voz comigo Pietra – disse sério – Não me compare com essas merdas de amigos que você arranjou.
  Ele se levantou e foi ate a porta
- Fala comigo quando estiver sã.


  Uma raiva incontrolada tomou meu corpo. Dei um alto grito de fúria e joguei a almofada contra a porta com força. Chorei amargamente pelo que havia acontecido o resto da tarde. Não comi nada, mesmo minha mãe vindo de 15 em 15 minutos me oferecendo algo. Também não queria sair do quarto. A dor de cabeça já havia ido embora. Fiquei imaginando o que tinha me levando aquela situação. Meu pai nunca havia me batido ou me tratado daquela maneira antes, eu confesso que sabia que ele queria meu bem, mas estava confusa o bastante para não saber em quem acreditar. Meus amigos não mentiriam pra mim? Mentiriam?


- É claro que mentiriam – disse Graziela minha irmã mais velha, deitada do meu lado – você os conheceu há algumas semanas e quer comparar sua confiança neles com a do seu pai que limpou junto comigo sua bunda de bosta?


  Grazi era seis anos mais velha do que eu. Ela não morava com a gente fazia quatro anos, mas sempre vinha nos visitar. E sempre que eu estava precisando conversar com alguém, ela também sempre vinha correndo me ajudar, me ouvi, me dá conselhos e puxar minha orelha quando necessário.
   Minha mãe era medica e quase nunca estava em casa, meu pai era advogado também não tinha muito tempo para gente. Ate as gêmeas nascerem e com a pequena Poliana, a  doença. Ela havia nascido com osteogênese imperfeita - mamãe disse que ela tinha ossos frágeis, e que conseguia facilmente se fraturar - desde seu nascimento mamãe começou o tratamento com ela.
  Infelizmente ela não resistiu e aos 3 anos de idade ela veio a falecer. Mamãe decidiu reduzi-o os turnos para ficar mais em casa com a gente após a morte de Poli, principalmente com Patricia. Papai agiu da mesma forma. Senti um pouco de culpa vindo dos dois. Porém a ligação com minha irmã mais velha, se tornou mais forte do que com eles.


- Porque eles mentiriam sobre isso? -indaguei.
- Por que será? - ironizou.
Dei de ombros.
- Pietra minha irmãzinha, deixa de ser inocente. Papai foi mole demais com você. Claro, é porque ele pensa que você deve ter ido a uma festinha de amigo na escola e não em uma Have...
Coloquei a mão na boca dela.
- Fala baixo. Não quero que eles escutem – sussurrei.
Ela tirou minha mão da boca dela.
- O que eu quero dizer. Que isso é a coisa mais infantil de se pensar. Fala que o pai liberou pra garota certinha não se preocupar.
- Serio? – não acreditei.
- Muito sério. E além do mais Pietra, eu sou a ovelha negra da família e não você. Eu sai de casa para morar com o Murilo, sem casar. Eu sou a que sujou o “nome” da família – ela olhou pra mim e sorriu – Já você, é a garota inteligente em que todos apostam e não a garota que anda com um bando de pré-adolescentes com identidades falsas.
- Eu só queria sair da rotina.
- Sair da rotina não é ficar bêbada ou fazer algo ilegal Pi. Você tem 14 anos, tem muita coisa pra viver e aprender ainda. Maturidade não se ganha dessa maneira. Claro que a gente aprende, errando. Mas não quando não há necessidade pra isso. Você já tem a mim, como exemplo.
- Mas você ama o Murilo.
- Amo sim. Mas se tivesse ouvidos nossos pais, teria evitado muita coisa que eu e ele não deveríamos ter passado. Foi bom, para nosso amadurecimento, porém foi desnecessário.
- Entendo.Obrigada por vir Grazi – Abracei-a.
- Sabe que pode contar sempre comigo né?
- Uhum – assenti com a cabeça.
Ela se ajeitou e olhou pra mim.
- Então, isso foi tudo o que aconteceu?
- Bom... tem um garoto... - gaguejei.
Ele me olhou com um ar de surpresa e abriu um longo sorriso.
- O que aconteceu, entre você e esse tal garoto?
- A gente ficou - disse envergonhada.
Ela abriu um grande “Oh” e colocou a mão na boca.
- Fala sério. Eu jurava que você ia ficar pra titia. Com aquela história do príncipe encantado.
- Mas eu ainda acredito nisso, só que o Ricardo foi tão legal comigo durante a noite toda, e eu estava tão corajosa...
- Chapada, você quer dizer?
- Que seja – arfei – Então rolou, sabe? Porém foi apenas uma ficada não vai rolar de novo.
- você não vai mais ver ele?
- Não, eu trabalho com ele no reforço.
Ela me encarou e logo se sentou na cama.
- Bom maninha, então boa sorte.
Olhei confusa para ela.
- Por que boa sorte?
- Porque vai ser difícil olhar todos os dias o garoto que você deu seu primeiro beijo e não sentir nada por ele. E te conhecendo...
- Será?
Ela se levantou e deu de ombros.


  É claro que eu não tinha pensando no enorme clima estranho que ficaria entre mim e Ricardo. Grazi tinha razão enquanto isso, agora referente a sentir algo. Bom, eu não gostava do Ricardo, não dessa forma. Foi apenas o calor do momento e desde que ele havia me abraçado tinha rolado um clima entre a gente. Não sou sonsa pra não ter percebido e eu sabia que ele havia sentido também. Porem ele não gosta de mim, foi apenas uma ficada, entende?
  Eu não podia esperar meu príncipe, sem saber o que fazer quando ele chegasse, a vida não é completamente um conto de fadas ou um filme que nos dá a chance de repetir a cena quando ela não sai do jeito que queremos. Quando descrevi meu beijo, bom queria mostra que havia sido perfeito, mas tivemos sim bate de dente, mordi sem querer a língua dele ou ate mesmo não soube para que lado virava a cabeça ou se apenas ficava parada. A gente escolhe o que narrar, mas na vida real não é assim.
   E naquela segunda-feira eu iria encará-lo, mas deveria agir da forma mais normal possível ou melhor, tentar.


***


  Resolvi passar o resto da noite lendo, porém meu estômago estava totalmente pedindo comida.   Desci as escadas ate a cozinha e antes de entrar, ouvi Grazi e meus pais conversando lá dentro. Fiquei do lado da porta escutando o que falavam.

- Calma! importante é que ela conversou com ela Arthur – dizia minha mãe com a voz calma.
- Como posso ter calma Estela? enquanto nossa filha de 14 anos já está chegando em casa bêbada? E consegue entrar em um evento, inapropriável para sua idade. Ela poderia ser presa.- disse meu pai. Parecia esta bastante furioso, ele andava de um lado para o outro, estava para fazer um buraco no chão.
- Eu sei Arthur, mas ela não foi presa. O que me preocupa é ela não querer comer nada. Isso vai fazer mal a ela.
- Quero saber quem era o organizador daquilo, para deixar que menores entrassem com identidades falsas.
- Ah pai, relaxa. Você sabe melhor do que eu, que isso é mais do que normal na idade dela. O que vocês devem entender é que Pietra não mais aquela criancinha de antigamente, ela está crescendo e virando uma mulher. - disse Grazi com a voz tranquila, como a da mamãe. Ela sempre sabia o que dizer - Inteligente, esperta. Ela não vai ser como eu, vocês apenas devem ajudar ela com isso, dando o apoio e as orientações necessárias do que ela deve seguir, como ela deve agir e quebrar esses tabus. No nosso caso, esses muros que impedem de vocês terem uma conversa franca com a filha adolescente de vocês.

  Todos ficaram em silêncio.
- Eu entendo que vocês não tiveram tempo para mim, quando eu precisei – continuou – Mas Pietra precisa de vocês presentes, agora, nesta fase. Eu posso conversar com ela, mas vocês é que são os pais.
  Grazi pegou sua bolsa e andou em direção a porta onde eu estava.
- Grazi eu... - disse meu pai, meio que sem palavras.
Ela parou.
- Tudo bem pai. Eu já perdoei vocês. Só não deixe que isso aconteça com a Pi, é uma fase difícil, mas tentem lidar com isso normalmente. Eu sei que vocês conseguem. - Sorriu e continuou a andar.

Grazi passou por mim e deu uma piscada. Sorri de volta.

  Ao entrar na cozinha, vi minha mãe aos prantos.
  Passei por eles sem dizer nada. Não queria olhar meu pai. O tapa ainda ardia em meu rosto, e por mais que soubesse que a culpa era minha, o orgulho falava mais alto.

- Quer alguma coisa querida? - disse mamãe, limpando as lágrimas.
- Não, eu estou bem. Desci apenas para tomar uma água. Obrigada - agradeci.
- Mais você não comeu nada ate agora - me olhou preocupada, seus olhos estavam inchados e vermelhos - se quiser eu posso te preparar um sanduíche, é rápido.
- Não mãe, eu não quero nada.
- Deixa Lene, quando ela quiser, ela sabe o que fazer para comer - disse meu pai, serio - ela já esta crescida, não foi isso que a Grazi disse.
 E saiu da cozinha.

O observei saindo. Apenas senti as lágrimas caindo sobre minha face.
Olhei para minha mãe. Ela estava com os braços estendidos.
- Vem cá minha garotinha.
Sai correndo e me aconcheguei em seu abraço.
- Mãe, eu não queria. Se eu soubesse, eu não teria ido, eu juro mãe. - disse chorando
- Calma meu amor. Agora já está tudo bem - ela acariciava meus cabelos - A gente só ficou muito preocupado, porque você não é disso Pi. E quando vimos a hora que você chegou e o estado em que você chegou, não conseguimos entender o porque daquilo. Ficamos preocupados filha. Você é muito nova para chegar em casa naquele estado.
- Mas foi só uma festa mãe. Não aconteceu nada demais.
- Eu sei meu bem e eu fico agradecida por isto, mas imagina se tivesse acontecido. Eu não gosto nem de imaginar. Você estava ilegal em um local que se acontece de tudo.
- Agora eu entendo bem isso.
- Sabemos que essa é uma fase difícil, mas nunca imaginamos vindo de você. Nos pegou desprevenidos e por mais que seu pai tente disfarçar Pietra, ele se sentiu novamente um fracasso como pai.
- Eu não sou mais uma garotinha mãe. Tenho que viver minhas experiências e através delas ver o que é certo e o que é errado. Quero poder errar e depois acertar. Cansei de ser a garota que vive para os estudos, aquela que seu único amigo é um livro.
- Pensei que gostasse disso, querida.
- E eu gosto mãe. Porém percebi que estava vivendo muito a vida dos outros e não a minha. Quero poder vivenciar minha história. Ser uma adolescente normal, sabe?
- Mas você é normal. Da sua maneira é normal.
Ela levantou meu rosto e me olhou nos olhos.
- Pietra, eu não quero que me prometa que não vá lá de novo. Só quero que me prometa que não vai mais beber. Que não acabe com sua vida por influencia de seus amigos. Que continue sendo você. Quer se divertir, pois bem se divirta. Mas não precisa se torna uma rebelde sem causa, pra isso.
- Eu prometo - sorri.
- Vem cá - me abraçou novamente - Você sabe que pode me contar quando estiver passando por essas crises não sabe?
Fiquei em silêncio. Por mais que eu quisesse dizer sim, eu não conseguia.
- Me desculpe pela ausência minha filha. Me desculpe por todos esses anos. Eu prometo que daqui pra frente vou tentar recuperar todo o tempo perdido que não passei ao seu lado - senti gotas caindo em meu cabelo.
- Eu te perdoo, mamãe. Agora eu apenas peço para você confiar mais em mim. Só um voto de confiança, é o que peço. Para poder viver minhas experiências. Eu aprendi muito com a Grazi, porém chegou minha vez de viver minha vida. Não literalmente, eu não vou sair de casa - rir - mas antes de ganhar responsabilidade, quero poder curtir como uma adolescente da minha idade.
 Ela levantou novamente meu rosto - Você não é mais minha garotinha - passou a mão em meu rosto - É uma linda garota, inteligente, esperta. Eu confio em você, filha.
- obrigada. Te amo mãe.
- Só quero que me conte, antes de ir para uma festas destas. Quero que me conte antes de tomar qualquer decisão. Sei que é difícil, que eu não sou a Grazi, mas preciso desse voto de confiança vindo de você também.
- Eu prometo que vou tentar te contar - sorrir.
- Tentar?
- Ta bom - rir - Eu te falo.

Mamãe se levantou, limpou as lágrimas do rosto.

- Que tal um sanduíche enquanto me conta as novidades, destes 14 anos de ausência?
- Ta bom - sorri.

  Fiquei ali sentada enquanto ela fazia nossos sanduíches de peito de peru com patê de frango. Era uma delicia, meu preferido e disso ela sabia. Conversamos durante toda a noite. Ela me perguntou sobre Mari, meus amigos da primeira serie. A maioria eu não tinha mais contato e ela ainda lembrava. Conversamos sobre o reforço e sobre festa. Poupei detalhes sobre o caso do cara estilo surfista.
  Ela me contou também sobre alguns casos do hospital. Eu amava olhar minha mãe. Por ela ser tão ausente, poucas vezes na minha infância conseguia ver ela, na maioria das vezes que nos comunicávamos era por telefone, ou pelos recados deixados na geladeira. E sempre que estava em casa ficava no telefone. Grazi dizia que ela cuidava das pessoas e que eles precisavam dela.
  Eu tentava entender isso, mas era difícil. Então nos poucos momentos que ficávamos juntas, eu contava tudo para ela, porém nunca dava tempo então resolvi apenas olhar para ela, e começar ouvir apenas as histórias dela.

  Aquele momento na cozinha com minha mãe, era tão surreal. Que por dentro eu achava que estaria sonhado.

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