Família
Meu corpo todo doía. O chão estava realmente frio naquela manhã de domingo. Minha cabeça estava, bom, não estava. Parecia que haviam colocado uma bomba nela e explodiria a qualquer momento. O som do evento parecia uma caixa de abelha na minha cabeça, porém no fundo, lá no fundo eu conseguia ouvir alguém chamando meu nome.
- Pi – gritava Patricia, minha irmã caçula
– Pi, acorda. Eu preciso usar o banheiro.
- Ah! Fala mais baixo Paty. Usa o lá de
baixo. Sua irmã não está bem.
Disse empurrando ela com uma das
mãos que ainda havia força.
Ela saiu correndo gritando “Papai,
a Pi tá com anorexia”
Eu sempre disse que televisão
deixava a criança bitolada, ainda mais Paty que amava canais de saúde. Ela
dizia que queria ser médica e dava um diagnóstico para todos. Lembro que uma
vez, papai resolveu passar a máquina zero na cabeça. Ela passou o dia interior
no quarto chorando, pensando que ele estava com câncer e que estávamos
escondendo dela.
Ouvi passos pesados vindo em
direção ao banheiro.
Seus braços me pegaram no colo e me
colocou em minha cama. Consegui ouvi Paty dizer “obrigada papai”
Eu sabia que aquele era o momento
mais constrangedor da minha vida. Sentei na cama e o encarei. Ele
me dava um copo com água e um comprimido. Não havia expressão em seu rosto.
– Tome – disse sério – vai melhorar a dor
de cabeça.
Peguei sem dizer nada. Tomei
e coloquei o copo na escrivaninha ao lado da cama.
Fiquei de cabeça baixa não
conseguia mais o encarar.
- Não vi a hora que você chegou ontem,
Pietra – disse ainda sério, pude perceber que estava me encarando.
- Iria dá 3:00 da manhã.
- O filme foi meio longo né?
Rir.
- Foi sim – olhei para ele – bastante
longo.
- Por que está fazendo isso?
- Fazendo o que?
- Acabando com sua vida. Você não é disso
Pietra.
- Eu não fiz nada demais papai – disse
irônica – eu apenas sai com meus amigos. O que se me lembro bem, você liberou
isso com eles.
- Eu liberei? - perguntou confuso.
- Liberou. Ou você não lembra de ter
liberado tudo e sem ter hora para acabar?
- Eu não liberei nada com eles.
- Para de mentir papai. Eles me contaram
tudo e você também queria que eu saísse da minha rotina.Você concordou com eles
sem falar comigo. Então eu fiz o que você quis. Eu me dei to-tal-men-te.
Quando me dei conta estava gritando,
exaltada e ríspida. Até sentir o meu rosto arder. Ele havia me dado um tapa em
meu rosto. O primeiro da minha vida.
- Nunca mais me chame de mentiroso ou
altere o seu tom de voz comigo Pietra – disse sério – Não me compare com essas
merdas de amigos que você arranjou.
Ele se levantou e foi ate a porta
- Fala comigo quando estiver sã.
Uma raiva incontrolada tomou meu
corpo. Dei um alto grito de fúria e joguei a almofada contra a porta com força.
Chorei amargamente pelo que havia acontecido o resto da tarde. Não comi nada,
mesmo minha mãe vindo de 15 em 15 minutos me oferecendo algo. Também não queria
sair do quarto. A dor de cabeça já havia ido embora. Fiquei imaginando o que
tinha me levando aquela situação. Meu pai nunca havia me batido ou me tratado
daquela maneira antes, eu confesso que sabia que ele queria meu bem, mas estava
confusa o bastante para não saber em quem acreditar. Meus amigos não mentiriam
pra mim? Mentiriam?
- É claro que mentiriam – disse Graziela
minha irmã mais velha, deitada do meu lado – você os conheceu há algumas
semanas e quer comparar sua confiança neles com a do seu pai que limpou junto
comigo sua bunda de bosta?
Grazi era seis anos mais velha do
que eu. Ela não morava com a gente fazia quatro anos, mas sempre vinha nos
visitar. E sempre que eu estava precisando conversar com alguém, ela também
sempre vinha correndo me ajudar, me ouvi, me dá conselhos e puxar minha orelha
quando necessário.
Minha mãe era medica e quase
nunca estava em casa, meu pai era advogado também não tinha muito tempo para
gente. Ate as gêmeas nascerem e com a pequena Poliana, a doença. Ela
havia nascido com osteogênese imperfeita - mamãe disse que ela tinha ossos
frágeis, e que conseguia facilmente se fraturar - desde seu nascimento mamãe
começou o tratamento com ela.
Infelizmente ela não resistiu e aos
3 anos de idade ela veio a falecer. Mamãe decidiu reduzi-o os turnos para ficar
mais em casa com a gente após a morte de Poli, principalmente com Patricia.
Papai agiu da mesma forma. Senti um pouco de culpa vindo dos dois. Porém a
ligação com minha irmã mais velha, se tornou mais forte do que com eles.
- Porque eles mentiriam sobre isso?
-indaguei.
- Por que será? - ironizou.
Dei de ombros.
- Pietra minha irmãzinha, deixa de ser
inocente. Papai foi mole demais com você. Claro, é porque ele pensa que você
deve ter ido a uma festinha de amigo na escola e não em uma Have...
Coloquei a mão na boca dela.
- Fala baixo. Não quero que eles escutem –
sussurrei.
Ela tirou minha mão da boca dela.
- O que eu quero dizer. Que isso é a coisa
mais infantil de se pensar. Fala que o pai liberou pra garota certinha não se
preocupar.
- Serio? – não acreditei.
- Muito sério. E além do mais Pietra, eu
sou a ovelha negra da família e não você. Eu sai de casa para morar com o
Murilo, sem casar. Eu sou a que sujou o “nome” da família – ela olhou pra mim e
sorriu – Já você, é a garota inteligente em que todos apostam e não a garota
que anda com um bando de pré-adolescentes com identidades falsas.
- Eu só queria sair da rotina.
- Sair da rotina não é ficar bêbada ou
fazer algo ilegal Pi. Você tem 14 anos, tem muita coisa pra viver e aprender
ainda. Maturidade não se ganha dessa maneira. Claro que a gente aprende,
errando. Mas não quando não há necessidade pra isso. Você já tem a mim, como
exemplo.
- Mas você ama o Murilo.
- Amo sim. Mas se tivesse ouvidos nossos
pais, teria evitado muita coisa que eu e ele não deveríamos ter passado. Foi
bom, para nosso amadurecimento, porém foi desnecessário.
- Entendo.Obrigada por vir Grazi – Abracei-a.
- Sabe que pode contar sempre comigo né?
- Uhum – assenti com a cabeça.
Ela se ajeitou e olhou pra mim.
- Então, isso foi tudo o que aconteceu?
- Bom... tem um garoto... - gaguejei.
Ele me olhou com um ar de surpresa e abriu
um longo sorriso.
- O que aconteceu, entre você e esse tal
garoto?
- A gente ficou - disse envergonhada.
Ela abriu um grande “Oh” e colocou a mão
na boca.
- Fala sério. Eu jurava que você ia ficar
pra titia. Com aquela história do príncipe encantado.
- Mas eu ainda acredito nisso, só que o
Ricardo foi tão legal comigo durante a noite toda, e eu estava tão corajosa...
- Chapada, você quer dizer?
- Que seja – arfei – Então rolou, sabe?
Porém foi apenas uma ficada não vai rolar de novo.
- você não vai mais ver ele?
- Não, eu trabalho com ele no reforço.
Ela me encarou e logo se sentou na cama.
- Bom maninha, então boa sorte.
Olhei confusa para ela.
- Por que boa sorte?
- Porque vai ser difícil olhar todos os
dias o garoto que você deu seu primeiro beijo e não sentir nada por ele. E te
conhecendo...
- Será?
Ela se levantou e deu de ombros.
É claro que eu não tinha pensando
no enorme clima estranho que ficaria entre mim e Ricardo. Grazi tinha razão
enquanto isso, agora referente a sentir algo. Bom, eu não gostava do Ricardo,
não dessa forma. Foi apenas o calor do momento e desde que ele havia me
abraçado tinha rolado um clima entre a gente. Não sou sonsa pra não ter
percebido e eu sabia que ele havia sentido também. Porem ele não gosta de mim,
foi apenas uma ficada, entende?
Eu não podia esperar meu príncipe,
sem saber o que fazer quando ele chegasse, a vida não é completamente um conto
de fadas ou um filme que nos dá a chance de repetir a cena quando ela não sai
do jeito que queremos. Quando descrevi meu beijo, bom queria mostra que havia
sido perfeito, mas tivemos sim bate de dente, mordi sem querer a língua dele ou
ate mesmo não soube para que lado virava a cabeça ou se apenas ficava parada. A
gente escolhe o que narrar, mas na vida real não é assim.
E naquela segunda-feira eu
iria encará-lo, mas deveria agir da forma mais normal possível ou melhor,
tentar.
***
Resolvi passar o resto da noite
lendo, porém meu estômago estava totalmente pedindo comida. Desci as
escadas ate a cozinha e antes de entrar, ouvi Grazi e meus pais conversando lá
dentro. Fiquei do lado da porta escutando o que falavam.
- Calma! importante é que ela conversou
com ela Arthur – dizia minha mãe com a voz calma.
- Como posso ter calma Estela? enquanto
nossa filha de 14 anos já está chegando em casa bêbada? E consegue entrar em um
evento, inapropriável para sua idade. Ela poderia ser presa.- disse meu pai.
Parecia esta bastante furioso, ele andava de um lado para o outro, estava para
fazer um buraco no chão.
- Eu sei Arthur, mas ela não foi presa. O
que me preocupa é ela não querer comer nada. Isso vai fazer mal a ela.
- Quero saber quem era o organizador
daquilo, para deixar que menores entrassem com identidades falsas.
- Ah pai, relaxa. Você sabe melhor do que
eu, que isso é mais do que normal na idade dela. O que vocês devem entender é
que Pietra não mais aquela criancinha de antigamente, ela está crescendo e
virando uma mulher. - disse Grazi com a voz tranquila, como a da mamãe. Ela
sempre sabia o que dizer - Inteligente, esperta. Ela não vai ser como eu, vocês
apenas devem ajudar ela com isso, dando o apoio e as orientações necessárias do
que ela deve seguir, como ela deve agir e quebrar esses tabus. No nosso caso,
esses muros que impedem de vocês terem uma conversa franca com a filha
adolescente de vocês.
Todos ficaram em silêncio.
- Eu entendo que vocês não tiveram tempo
para mim, quando eu precisei – continuou – Mas Pietra precisa de vocês
presentes, agora, nesta fase. Eu posso conversar com ela, mas vocês é que são
os pais.
Grazi pegou sua bolsa e andou em
direção a porta onde eu estava.
- Grazi eu... - disse meu pai, meio que
sem palavras.
Ela parou.
- Tudo bem pai. Eu já perdoei vocês. Só
não deixe que isso aconteça com a Pi, é uma fase difícil, mas tentem lidar com
isso normalmente. Eu sei que vocês conseguem. - Sorriu e continuou a andar.
Grazi passou por mim e deu uma piscada.
Sorri de volta.
Ao entrar na cozinha, vi minha mãe
aos prantos.
Passei por eles sem dizer nada. Não
queria olhar meu pai. O tapa ainda ardia em meu rosto, e por mais que soubesse
que a culpa era minha, o orgulho falava mais alto.
- Quer alguma coisa querida? - disse
mamãe, limpando as lágrimas.
- Não, eu estou bem. Desci apenas para
tomar uma água. Obrigada - agradeci.
- Mais você não comeu nada ate agora - me
olhou preocupada, seus olhos estavam inchados e vermelhos - se quiser eu posso
te preparar um sanduíche, é rápido.
- Não mãe, eu não quero nada.
- Deixa Lene, quando ela quiser, ela sabe
o que fazer para comer - disse meu pai, serio - ela já esta crescida, não foi
isso que a Grazi disse.
E saiu da cozinha.
O observei saindo. Apenas senti as
lágrimas caindo sobre minha face.
Olhei para minha mãe. Ela estava com os
braços estendidos.
- Vem cá minha garotinha.
Sai correndo e me aconcheguei em seu
abraço.
- Mãe, eu não queria. Se eu soubesse, eu
não teria ido, eu juro mãe. - disse chorando
- Calma meu amor. Agora já está tudo bem -
ela acariciava meus cabelos - A gente só ficou muito preocupado, porque você
não é disso Pi. E quando vimos a hora que você chegou e o estado em que você
chegou, não conseguimos entender o porque daquilo. Ficamos preocupados filha.
Você é muito nova para chegar em casa naquele estado.
- Mas foi só uma festa mãe. Não aconteceu
nada demais.
- Eu sei meu bem e eu fico agradecida por
isto, mas imagina se tivesse acontecido. Eu não gosto nem de imaginar. Você
estava ilegal em um local que se acontece de tudo.
- Agora eu entendo bem isso.
- Sabemos que essa é uma fase difícil, mas
nunca imaginamos vindo de você. Nos pegou desprevenidos e por mais que seu pai
tente disfarçar Pietra, ele se sentiu novamente um fracasso como pai.
- Eu não sou mais uma garotinha mãe. Tenho
que viver minhas experiências e através delas ver o que é certo e o que é
errado. Quero poder errar e depois acertar. Cansei de ser a garota que vive
para os estudos, aquela que seu único amigo é um livro.
- Pensei que gostasse disso, querida.
- E eu gosto mãe. Porém percebi que estava
vivendo muito a vida dos outros e não a minha. Quero poder vivenciar minha
história. Ser uma adolescente normal, sabe?
- Mas você é normal. Da sua maneira é
normal.
Ela levantou meu rosto e me olhou nos
olhos.
- Pietra, eu não quero que me prometa que
não vá lá de novo. Só quero que me prometa que não vai mais beber. Que não
acabe com sua vida por influencia de seus amigos. Que continue sendo você. Quer
se divertir, pois bem se divirta. Mas não precisa se torna uma rebelde sem
causa, pra isso.
- Eu prometo - sorri.
- Vem cá - me abraçou novamente - Você sabe
que pode me contar quando estiver passando por essas crises não sabe?
Fiquei em silêncio. Por mais que eu
quisesse dizer sim, eu não conseguia.
- Me desculpe pela ausência minha filha.
Me desculpe por todos esses anos. Eu prometo que daqui pra frente vou tentar
recuperar todo o tempo perdido que não passei ao seu lado - senti gotas caindo
em meu cabelo.
- Eu te perdoo, mamãe. Agora eu apenas
peço para você confiar mais em mim. Só um voto de confiança, é o que peço. Para
poder viver minhas experiências. Eu aprendi muito com a Grazi, porém chegou
minha vez de viver minha vida. Não literalmente, eu não vou sair de casa - rir
- mas antes de ganhar responsabilidade, quero poder curtir como uma adolescente
da minha idade.
Ela levantou novamente meu rosto -
Você não é mais minha garotinha - passou a mão em meu rosto - É uma linda
garota, inteligente, esperta. Eu confio em você, filha.
- obrigada. Te amo mãe.
- Só quero que me conte, antes de ir para
uma festas destas. Quero que me conte antes de tomar qualquer decisão. Sei que
é difícil, que eu não sou a Grazi, mas preciso desse voto de confiança vindo de
você também.
- Eu prometo que vou tentar te contar -
sorrir.
- Tentar?
- Ta bom - rir - Eu te falo.
Mamãe se levantou, limpou as lágrimas do
rosto.
- Que tal um sanduíche enquanto me conta
as novidades, destes 14 anos de ausência?
- Ta bom - sorri.
Fiquei ali sentada enquanto ela
fazia nossos sanduíches de peito de peru com patê de frango. Era uma delicia,
meu preferido e disso ela sabia. Conversamos durante toda a noite. Ela me
perguntou sobre Mari, meus amigos da primeira serie. A maioria eu não tinha
mais contato e ela ainda lembrava. Conversamos sobre o reforço e sobre festa.
Poupei detalhes sobre o caso do cara estilo surfista.
Ela me contou também sobre alguns
casos do hospital. Eu amava olhar minha mãe. Por ela ser tão ausente, poucas
vezes na minha infância conseguia ver ela, na maioria das vezes que nos
comunicávamos era por telefone, ou pelos recados deixados na geladeira. E
sempre que estava em casa ficava no telefone. Grazi dizia que ela cuidava das
pessoas e que eles precisavam dela.
Eu tentava entender isso, mas era
difícil. Então nos poucos momentos que ficávamos juntas, eu contava tudo para
ela, porém nunca dava tempo então resolvi apenas olhar para ela, e começar
ouvir apenas as histórias dela.
Aquele momento na cozinha com minha
mãe, era tão surreal. Que por dentro eu achava que estaria sonhado.
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