Educar
A noite passou mais lenta do que imaginava. Me virava de um lado e de outro, porém não conseguia dormir. Meus pensamentos gritavam dentro da minha cabeça e por mais que tentasse entender, não soube o motivo do sono não vir. Eu estava feliz e ao mesmo tempo sem jeito de como tratar ou olhar Ricardo - é, eu conseguia sentir as coisas, antes mesmo delas acontecerem.
Parecia que o modo zumbi havia sido
ativado - não me pergunte como foi a escola, porque não lembro como cheguei lá
- Quando sai do transe, estava na penúltima aula, aquela depois do intervalo. Era
educação física e eu nunca fazia aula - por incrível que pareça, nunca fui boa
em atividades físicas. Era um mal exemplo matar uma aula, mas na minha cabeça
tinha sentido - Eu sempre me recuperava nos trabalhos que a professora me
passava.
A professora havia dito que
uma outra turma iria fazer aula com a gente, não tinha prestado atenção ate
perceber que era a turma de Mari. Fui surpreendida por ela, quando senti suas
mãos em meus olhos, perguntando: " adivinha quem é". Não acreditei.
Nos abraçamos, rimos e colocamos o papo em dia.
- Então é verdade o que andam
comentando por ai? - disse já sentada ao meu lado.
- O que andam comentando por ai? -
já imaginava o que ela estava se referindo. As noticias na escola correm.
- Que você e Ricardo estão ficando?
- O que? - gritei.
- Não vem se fazer de santinha comigo,
amiga. A Clara postou ontem na internet a foto de você e ele dançando em uma
festa sábado. Pareciam bem íntimos. Não tem como negar.
- Mas eu não estou negando. A gente saiu
sábado, porém eu não ando ficando com Ricardo. - disse ríspida.
- Não parecia isso na foto - conseguia
sentir a ironia no ar. Mari era ótima nisso.
- Tá - conclui - A gente até ficou no fim
da festa, mas foi só naquele dia. Eu não ando ficando com ele.
- Ah - ela pôs a mão na boca - então você
esta realmente ficando com ele. Quem diria, hein. Minha amiguinha, se tornando
normal.
- Mari, eu sou normal. - a encarei seria -
Eu apenas estava esperando o momento certo e a pessoa certa.
- Então o momento certo é uma festa para
maiores e a pessoa certa é o Ricardo? imagino que estivesse bêbada, né?
- Como você sabe? - me surpreendi.
- Ai amiga, como você é inocente...
- Minha irmã disse a mesma coisa.
- A Grazi tem razão. Imagino que foi ele
que ofereceu bebida, também.
- Foi - estava admirada, como Mari sabia
de tudo? - você estava lá?
- Não é preciso esta lá pra saber o lógico
do que você faria, amiga. Você já foi mais durona sabia? Lembro de quando você
me afastava de encrenca, hoje em dia ta meio que ao cotrario.
- Mas eu não fiz nada demais. Confesso que
bebi demais, porém não foi nada além disso.
- Que bom né amiga, porque se fosse
outros, uma hora dessa estaria no grupo da "marola". E você sabe o
que acontece com as garotas bonitas que entram lá, né?
- Sei - sussurrei.
Me veio em mente o que houve com
Samira. Ela era do 7º ano, era bonita, inteligente e tinha tudo. Até que em um
minuto virou objeto sem valor, mendigando por uma pedra. Saiu de casa e virou
garota da vida. Os pais não entenderam o que levaram a garota a fazer aquilo, a
droga meche com a mente e acaba não apenas com a vida da pessoa, mas de todos a
sua volta. Soube que a ultima noticia dela, é que ela estava em uma casa de
recuperação. Esperava sinceramente que ela se recuperasse, ela era tão jovem.
- Então, espero que ainda tenha a mente da
garota que eu estudei, a alguns anos atrás.
- Tenho. Pode ficar tranquila.
- Que bom. Eu sou a garota de
experiências, você é minha amiga que me dá orgulho, não a vadia que fica na boca
das fofoqueiras da escola. Quer experiências pergunte para mim, eu sei de tudo
e de todos.
- Eu sei que você sabe.
Rimos
Ela olhou para quadra onde estava
Ricardo. Ele jogava futebol com os outros meninos. Ela o encarou por alguns
instantes e depois me olhou desconfiada, apontando para ele,
- Mas então, qual é o lance com ele
então? Vão ficar de novo?
- Não sei. Vou ter contato com ele somente
no reforço, a partir de hoje. Meus pais acham eles uma péssima influência para
mim.
- Eu entendo seus pais, foi surpresa ate
pra mim.
- Estou com medo - desviei o olhar da
quadra - Não sei com que cara vou falar com ele, hoje.
- Com a cara de sempre, ué - ela falando
parecia ser tão normal - O que você não pode fazer é ignorar ele. Ai sim, vai
ser mancada.
- Eu estava pensando nisso.
- Mas você quer ficar com ele?
- Eu não sei. Ele é apenas o Ricardo.
Claro, que ele esta bastante diferente, mas continua o mesmo Ricardo. Nosso
amigo - demorei um pouco para concluir - ...apenas.
- Amiga, essa parada de amigo já acabou
faz tempo.
- Por que você esta dizendo isso?
- Por que ele me disse - ela sorriu - e
qualquer um ver.
- Ver o que?
- Que você não tirou os olhos dele hoje.
Foi a primeira vez que me dei conta
que durante toda manhã, eu estava olhando para ele. E naquele momento, só
naquele momento eu olhei de verdade para ela. O meu livro já não tinha
palavras, muito menos letras. Meu olhar, mesmo que discreto não saia dele.
***
Havia acabado a aula. Mari e eu nos
despedimos, ate ver que Ricardo vinha na minha direção. Foi ridículo, mas eu
meio que corri pra pegar carona com o pai de Mari que estava esperando por ela
na frente da escola. Mari e seu pai ficaram confusos, mais o Sr. Souza foi
gentil e me levou ate em casa. Ele era amigo de meu pai, toda quarta
jogavam bola juntos. De tanto ir me buscar na casa dela, certa vez meu pai o
chamou para um churrasco em minha casa, desde então são grandes amigos,
Tomei banho, almocei e tinha que
voltar para o reforço e encarar novamente Ricardo. Aquilo era constrangedor. O
bom é que essa semana eles iriam orientar os alunos, eu apenas iria fiscalizar.
Não ficaria tanto com ele. É, a sorte estava ao meu favor.
Cheguei um pouco atrasada, o Sr.
Moacir estava me esperando.
- Boa Tarde, mocinha!
- Boa Tarde, Sr. Moacir.
- Atrasada?
- É... a vida não ta fácil pra ninguém né.
Ele riu.
Chegando na sala. Ângela estava me
esperando.
- Quando eu disse "Deixar seus alunos
a vontade", eu não quis dizer para deixa-los livres sem sua supervisão.
- Desculpe, tive um pequeno contratempo.
Não vai repetir, eu juro.
Ele fez uma careta.
- Ta bem - ele me entregou o cronograma
e apontou para sala - a Clara esta te esperando.
- Vou supervisionar ela hoje? - eu
explodia de alegria por dentro.
- Sim - ela apontou para o cronograma - os
três primeiro dias por ordem alfabética, lembra? Você que formulou isso.
- Sim! É claro que eu lembro.
- Tá, mas só pra você não esquecer, não
fica muito lá. Vai de vez em quando. As crianças devem se acostumar com ela, E
amanhã a turma é sua.
- Obrigada ! - sorri.
- Agora vai!.
Não estava acreditando. Eu
não iria ver Ricardo pelas próximas duas semanas. Não teria que encara-lo. E
quando voltássemos a nos ver, seria tudo normal. Novamente. Pelo menos é o que
eu imaginava.
***
Tentei não encarar ele
durante a escola. Na verdade, tentava ficar o máximo não visível para ele. Era
quase impossível, pois aonde eu sentava ele aparecia com os amigos. Foi as duas
semanas que mais fiquei no banheiro. As funcionarias da limpeza chegaram ate me
indicar alguns médicos, pensando que estava com alguma doença ou sei lá.
Na segunda-feira da semana que iria
supervisiona-lo estava bem mais confiante que tudo daria certo. Ate receber uma
mensagem de Mari dizendo:
"Chegou
o dia do caçador se encontrar com a caça fugitiva. Me deixa a par dos
acontecimentos. Beijos, Mari"
Aquilo não foi nada animador. Mari
dizia que eu estava fugindo do que eu queria, mas quem disse que eu queria
Ricardo? Eu apenas estava sem graça de olhar para ele, depois do papelão que
passei. Eu estava bêbada, não foi real. Foi o que conclui por fim.
Cheguei para o reforço a tempo,
Ângela havia dito que Ricardo já estava em sala. Dei um tempo ate entrar.
Organizei uns arquivos, arrumei a mesa. Ate que deu a hora e eu não podia mais
enrolar. Entrei na sala de aula. Ele estava rodeado pelas crianças que faziam
um circulo enquanto ele contava uma história. Ele me olhou quando entrei, porém
continuou. Estava tudo bem ate ali.
- Páris se revelou para Romeu e,
após uma luta, Páris caiu morto. Romeu, desesperado com a morte da amada, bebeu
o veneno e caiu ao lado do túmulo de Julieta. No mesmo hora, Frei Lourenço
aproximou - para libertar Julieta do seu túmulo e do seu sono. Julieta acordou
e, encontrando Romeu morto, decidiu morrer também. Como Romeu havia bebido todo
o veneno, ela pegou no faca e cravou - no peito. Quando os guardas chegaram,
depararam com todo o horror e logo correram a chamar os Capuletos, os
Montéquios e o Príncipe Escalo, que se souberam de toda a verdade pelas
revelações de Frei Lourenço e pela carta de Romeu. As famílias, chocadas pela
tragédia e pelo ódio que a originou, resolveram fazer as pazes ali mesmo. Para
a história ficou um amor intenso e trágico que nem a morte conseguiu separar.
Todas as crianças olhavam para ele,
fascinadas com a história.
- E esse é um clássico de William
Shakespeare, tido como maior escritor do
idioma inglês e o mais fluente dramaturgo do mundo. Alguma dúvida sobre a peça?
Muitas crianças levantaram a mão.
Ele escolheu um garoto ruivo e cheio de
sardas no rosto.
- Eles tiveram que morrer para as famílias
ficarem de bem?
- Infelizmente sim, Davi. E é interessante
isso, vocês conseguem ver que, por mais que a família deles fossem contra o
romance dos dois, no fim o ódio foi vencido pelo amor.
Nesta hora ele olhou para mim. E
voltou atenção para uma garotinha que estava com a mão levantada.
- Professor e se eles não tivesses
morrido?
- Podemos imaginar que se o plano de
Julieta desse certo, a família deles ainda assim não teria liberado o romance
deles e provavelmente teriam fugido.
- E se caso um deles resolvesse não morrer
um pelo outro?
- Se Romeu não fosse o cara que Julieta estava
esperando - ele deu uma pausa - vou deixar que a tia Pietra responda essa para
você.
Eu o encarei sem entender. E olhei para o
garotinho.
- Bom - respirei - no amor a gente tem que
se arriscar e Romeu provou isso para Julieta quando ele morreu por ela. Naquele
momento ela viu que ele era o amor da vida dela e que não fazia mais sentido
viver com outra pessoa, sendo que seu coração estava de um lado morto e de
certa forma por sua culpa. Não valia mais apena viver. Com isso, vemos que
mesmo se eles não morressem, eles não viveriam. Um era a vida do outro.
Eu o encarei e ele sorriu.
- Está respondido sua pergunta pequeno? -
disse Ricardo.
A garoto acenou com a cabeça.
- Ta mais uma para acabar nossa aula de
hoje.
Todos gritavam eu, eu.
- Professor... a gente vai fazer essa peça
no fim do reforço? - perguntou uma garotinha de cabelos cacheados
- É claro! - respondeu.
Todos gritavam: Eba!
- Porém, teremos que ter a aprovação da
nossa supervisora Pietra - todos olharam para mim - E ela não esta falando
comigo - ele fez uma cara triste - Então peçam a ela pra voltar a falar com o
tio Ricardo, que ai a gente combina, em uma linguagem que vocês vão escolher -
todos gritaram de alegria - para ensaiarmos a peça.
Todos correram para cima de mim. Dizendo:
Volte a falar com tio Ricardo, tia Pietra.
Eram tantos pedidos que não tive como
negar. Foi um golpe sujo da parte dele.
- Ta bem, ta bem - eu dizia.
Olhei para ele com cara de
"apelou". E rir..
***
A aula havia terminado e havíamos ficado
para arrumar a sala. Desde a saída das criança o silêncio pairou na sala. Ele
não olhava para mim e eu não falava com ele. Ate que começamos a arrumar a
prateleira dos livros e de repente senti sua mão segurar meu braço.
- Até quando vai ficar fugindo de mim?
- Eu não estou fugindo de você? - disse
sem olhar para ele. Tentei sair de perto, porém sua mão segurava com força meu
braço.
- Se não esta, porque você nunca esta em
casa? nunca atende o telefone? não fala comigo na escola? A Mari me contou
sobre seu pai. - Disse largando o que tinha na outra mão na prateleira.
- Linguaruda - sussurrei.
- A culpa não é dela, eu a forcei me
contar,
- Mas mesmo assim, ela não devia - fiz
força e ele soltou meu braço.
- Vai ficar sem olhar para mim mesmo? -
ele falava serio.
Fiquei em silêncio.
- Me desculpe Pietra. Eu entendo seu pai,
não o julgo pela decisão dele, mas não quero que isso acabe.
- Que o que acabe?
- Você sabe - respirou fundo - isso entre
nós.
- Não há nada entre nós Ricardo. Nós
apenas ficamos uma noite. Eu estava bêbada, passou.
- Você sabe que não ficou só por isso.
- É claro que ficou Ricardo! Não tente
coloca coisa onde não existe, nós somos apenas amigos, ta?
- Olha pra mim e diz isso.
Eu tremia. Não conseguia levantar minha
cabeça e encará-lo.
- Olha pra mim, Pietra e diz que sou
apenas seu amigo. - gritou.
Levantei a cabeça devagar.
Seus olhos, ele tinham o mesmo brilho daquela noite. Pensei que fosse coisa da
minha imaginação, uma lembrança ilusória, mas não, ele tinha mesmo aquele
brilho que me atraia para perto dele. Aquele brilho que me fazia sentir segura.
Mas fui persistente, não quis da o braço a torcer.
- Para Ricardo.
- Você sabe que existe algo, admita
Pietra.
- Para Ricardo. - eu já não estava
aguentando mais, segurar.
- Admita Pietra.
- Para - Coloquei as mãos sobre minha
cabeça.
- Pietra?
- Porque? - gritei - não vai dá certo. Meu
pai quer que eu fique longe de você Ricardo.
Ele ficou em silencio olhando para mim.
- E eu não sou Julieta, Ricardo. Eu sei
bem o que eu quero... - gaguejei.
- E o que você quer?
Meu coração parecia que iria
explodir. Eu estava tremula. E de repente percebi lagrimas caindo sobre meu
rosto.
- Não precisa falar - Ele disse.
Ele pegou as coisas que estava segurando
antes e começou arrumar em cima do armário.
- Você pode não querer falar comigo. Pode
me ignorar ou fugir de mim, mas eu não vou desistir de você. Eu gosto muito de
você, Pietra. - me olhou e voltou a mexer nos livros - Não paro de pensar
em você, desde que te reencontrei aqui no reforço. Eu também estou com medo,
mas quero aprender junto com você a fazer dessa amizade um possível amor.
Eu olhava para ele e não conseguia dizer
nada.
O meu silêncio o matava, dava para sentir
no tremor de suas mãos, que tremiam ao mexer nos livros.
- Acho que é nessa hora que você diz
alguma coisa. - disse ele por fim.
Sorri para ele e a única coisa que
consegui dizer foi
- Me beija?
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