Preto sem Branco
Acordei com uma luz forte na minha cara. Tive dificuldade ao me sentar na cama, estava me sentindo muito fraca. Olhei ao redor e reconheci o lugar, era um dos quartos do hospital em que minha mãe trabalhava. Senti que estava meio lesada - ou dopada como minha mãe dizia - as coisas pareciam que se moviam devagar. Tirei da mente a hipótese de me levantar, então comecei a gritar minha mãe. Em minutos entrou o doutor Roger - um homem negro, calvo e muito simpático. Quando era criança e vinha visitar minha mãe, ele me oferecia um doce escondido e dizia que era nosso segredo - estava com uma plancheta na mão e sorriu quando me viu.
- Como esta se sentindo mocinha?
- Bem, só não sei porque estou aqui.
Ele sorriu.
- Você desmaiou e sua mãe preferiu trazer você para cá, colocamos um pouco de calmante no seu soro, por isso essa sensação de lenta.
- ah, sim!
Ele olhou para mim.
- Você cresceu bastante desde a ultima vez que veio aqui.
- Fiquei meia sem tempo e...
Eu tinha totalmente me esquecido do motivo pelo qual eu estava aqui. Ricardo! A lembrança veio na minha mente e eu...
- O que aconteceu? Dr Roger cadê minha mãe? - disse aflita.
- Calma Pietra... sua mãe esta atendendo outro paciente, mas assim que soube que acordou me pediu para vir te ver e lhe avisar que já esta vindo.
- Onde esta Ricardo? Quanto tempo eu estou aqui?
Ele ficou em silêncio.
Minha mãe apareceu na porta na hora. Andou depressa em minha direção e me abraçou com força.
- Meu amor! Que bom que você acordou - sorriu - Já estávamos preocupados.
- Mãe, cadê Ricardo?
- Seu pai e suas irmãs estão na recepção, ate Murilo veio...
- Mãe... - gritei a interrompendo. Ela se calou e olhou para mim - Cadê Ricardo?
Ela olhou para o Dr Roger, que assentiu e saiu do quarto.
- Pietra, precisamos conversar - disse seria. Ela sentou ao meu lado na cama - mas primeiro preciso saber do que se lembra.
- Lembro de Paty gritando, a moto de Ricardo se chocando com o caminhão e você gritando socorro.
- Filha, aconteceu isso mesmo. Depois que você desmaiou, corri para chamar a equipe de resgate do hospital, porém o estado dele era muito grave...
Eu estava tremula, não acreditava que aquilo era real, que aquilo estava mesmo acontecendo. Eu não queria mais ouvir... eu apenas queria ver-lo.
- Aonde ele está mãe? a interrompi.
- Filha, realizamos todos os procedimentos possíveis, mas...
- Não...- disse chocada.
- Ele não resistiu.
Meu mundo havia desabado e com ele meu coração. Minha mãe havia me dito que fiquei desacordada durante 3 dias e ela já estava muito preocupada comigo. Neste momento imaginei que ficar desacordada não era nada comparado ao ter que viver a partir de agora sem Ricardo, eu poderia ter tido um trauma, perdido a memória ou se pelo menos acordasse e visse que aquilo havia sido apenas uma pesadelo. Mas não, esse é o ruim da realidade, ela nunca tem volta.
Eu não conseguia entender o porque que ele havia bebido e pegado a moto, mais do que qualquer outra pessoa, Ricardo era muito consciente em relação a isso. Minha mãe havia me dito que ele foi o causador do acidente, ele estava em alta velocidade e fazia zigue-zague na pista. O motorista do caminhão ate tentou prestar os primeiros socorros, mas minha mãe já havia ligado para a ambulância do hospital.
Naquela noite depois de chorar mares, meu corpo simplesmente parou de funcionar. As enfermeiras do hospital ate que tentaram me animar, mas para mim nada mais importava. Parecia que haviam me dado uma anestesia geral, eu não falava, não andava e olhava para o nada, enfim eu vegetava.
Minha mãe me trouxe uma muda de roupas, pois mais tarde seria o velório dele. Não sei aonde conseguir força para ir ate lá. Previa que todos iriam me acusar com o olhar, depositando em mim a culpa de tudo o que houve, o que no final eu entendi que realmente era.
Foi eu que não havia contado para Ricardo sobre o beijo que Gustavo havia me dado, mesmo sendo contra minha vontade, percebi pelo tom que falava, que quem contou para ele não contou a história verdadeira. Se eu tivesse conseguido me explicar, ele me entenderia e ate mesmo teria ido ate Gustavo tirar satisfação. Ao pensando bem, ninguém sabia - além de minha mãe e Grazi – desse beijo. Será que o cretino do Gustavo havia falado? Era bem provável devido as circunstâncias, porém não importava mais, o fato era que eu que não havia contado e ele confiava em mim.
Tudo o que aconteceu foi merecido. Eu fui uma péssima namorada, eu não servia para essas coisas, como ele disse eu não sabia o que era amar alguém de verdade e quando tentei demonstrar, já era tarde demais.
Eu me sentia uma inútil, eu havia tirado a vida de uma pessoa incrível. Eu era uma assassina, alguém que não merecia viver, estava o matando a 3 anos e agora havia dado meu “grã finale”. Eu me sentia um nojo, viver não valia mais apena. Eu não valia mais apena.
Lembro que no dia do velório vi a sra Marlene conversando com algumas pessoas. Meus pais iriam passar lá mais tarde, já que Paty viu tudo, eles estavam a levando em um psicólogo infantil e acharam que seria péssimo levá-la ate lá. Por isso resolveram deixá-la na casa de minha tia. Grazi iria trabalhar durante toda dia e também iria para lá durante a noite.
Minhas amigas também estavam no lado de fora da casa de Ricardo – onde acontecia o velório – elas conversavam com uns amigos dele que estavam lá também. Elas ate tentaram chegar ate a mim, mas não lembro o que falaram, Mari sabia que naquele momento era melhor me deixar sozinha e assim elas se foram.
Eu já não agüentava mais ficar ali, mesmo devendo aquilo a ele. Eu não conseguia mais ter que olhar para aquele caixão e voltar a minha memória a última cena dele, e ela não era dele sorrindo ou com ele contendo aquilo brilho no olhar que eu tanto amava, era ele partindo, querendo nunca mais me ver.
- Sua mãe me contou sobre o que aconteceu... Eu sinto muito!
Já devo ter dito que não sei onde consegui forças pra chegar ate ali, mas não dava mais... não para mim. Respirei fundo e me levantei. Fui ate o caixão e lá estava ele. Seu rosto havia alguns roxos e um corte costurado em sua testa. Por mais estranho que pareca ele parecia feliz. Não acreditava muito nesses assuntos de religião, mas acho que ele deve estar em um lugar bacana e que nunca mais iria me ver. Um desejo dele realizado.
Ok! eu sei que isso era ridículo, Ricardo não diria aquilo, ele estava bêbado e alterado, aquele não era ele... eu podia ser tudo, porém melhor do que qualquer outra pessoa eu observava e conhecia meu namorado, aliás foram três anos. Eu não me apaixonei a cada dia por um cachaceiro sem escrúpulos... eu o conhecia e sabia que deveria haver uma outra explicação para isso tudo.
- Sua mãe me contou sobre o que aconteceu... Eu sinto muito!
- Acho que essa frase é minha dona Marlene - disse ao olhar para ela.
- Já presumia algo de ruim, coração de mãe sente.
Ela não conseguiu conter as lagrimas. Aguardei um tempo ate ela se recompor.
- Eu tentei te ligar - disse ao passar o lencinho que tinha na mão, na lagrima que caia - mas você não atendeu, presumi que estava na biblioteca.
- Quando vi já era tarde demais.
- Eu imaginava - tentou forçar um sorriso - eu o prendi em casa o dia todo, porém depois do almoço, chegou um amigo dele e logo após eles saíram. Disse que estavam indo falar com você.
- Mas ele estava bêbado quando saiu?
- Não, provavelmente bebeu na rua. Ele sabia o que eu pensava em relação a bebida, ainda mais sabendo que iria pilotar. Nunca teria deixado ele sair de casa.
Fiquei pensando que a senhora Marlene pensava a mesma coisa que eu, ele nunca iria ligar estes dois pontos fracos dele. A questão era.
- Você se lembra quem era esse amigo dele?
- Quando eu o atendi na porta, ele disse que o nome dele era... - ela colocou a mão na cabeça - me desculpe eu não lembro. Mas se eu o vir por aqui te mostro, ele foi ao hospital e provavelmente vira aqui hoje.
- Entendo... Vou aguarda-lo então...
Ela assentiu.
Me deu um forte abraço e sussurrou em meu ouvido.
- Obrigada por esta aqui querida, Ricardo te amava e não se culpe por nada. A culpa não foi sua. Ele não era mais criança e sabia dos riscos.
Ali com ela não consegui conter as lagrimas, a abracei com força e em meio ao choro, fiz a suplica que cortava meu coração.
- Você me perdoa?
- Mesmo sem motivos - ela sorriu - Eu a perdoo - e me beijou na testa.
Fiquei no velório e logo após seguimos para o enterro. O amigo de Ricardo ainda não havia parecido. O estoque de água no meu corpo se multiplicava, eu não conseguia para de chorar e pensar nele. Por mais que sua mãe havia me perdoado a culpa ainda havia dentro de mim.
Eu sentia vergonha de olhar para senhora Marlene, em todo momento ela tentava ser forte, porém assim que alguém saia, seu rosto se entristecia e lágrimas escorriam por ele, o que ela imediatamente limpava para não deixar transparecer a dor e o sofrimento que em seus olhos gritavam.
Enquanto o caixão descia e logo após sendo soterrado por uma montanha de terra, desejei estar no lugar dele. Ao jogar minha ultima rosa, entendi naquele momento o que Julieta sentiu ao ver Romeu, eu o amava e ele estava morto por minha causa. O que eu estava fazendo mesmo ali?
Enquanto o caixão descia e logo após sendo soterrado por uma montanha de terra, desejei estar no lugar dele. Ao jogar minha ultima rosa, entendi naquele momento o que Julieta sentiu ao ver Romeu, eu o amava e ele estava morto por minha causa. O que eu estava fazendo mesmo ali?
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