Amigos
Acordei com um cheiro delicioso de bolo de fubá com cobertura de chocolate quente. Ah vovó! como sempre me mimando e como sempre, ela sabia muito bem meus gostos. Durante a noite devia ter me coberto, com uma manta de croché que ela fazia.
Segui em direção a cozinha de onde vinha o delicioso cheiro. Me deparei com vovó ao telefone, reconheci na hora que falava com minha mãe. Sempre que vovó se referia a ela, a chamava de teté. Fiquei atras da porta, ouvindo sobre o que falavam, o que imagina que era sobre mim.
- Calma teté, ela esta bem. Conseguiu vir direto para casa e agora esta dormindo. Ontem esta toda falante na lanchonete do seu Silva, nem parece a garota que me disse por telefone... - deu uma pausa - É, ela falou sim. Fez amizade e tudo. Eu disse que seria bom ela vir para cá e vocês também... - outra pausa – eu sei que vocês tem compromisso, mas já faz tanto tempo... - outra pausa – tudo bem, mas pode deixar que dela eu cuido, eu não cuidei de vocês?... - pausa – Depois nos falamos mais então... também amo vocês, manda um beijo pro Arthur, diz que estou com saudades dele. Deus te abençoe. Tchau.
Eu com meu corpo escondido atras da porta quando vovó, disse: - Já pode sair dai, menina!
Surpresa, me revelei e fui em direção a mesa que estava cheia de frutas e uma jarra de suco.
- Como sabia que eu estava ali?
- Sua sombra aparecia muito bem na parede.
- Ah! Que saco. Ninguém nunca me descobre.
- Agora tem alguém.
- Verdade! - sorri.
Ela trouxe um forma de alumínio com o delicioso bolo dentro.
- Fiz agora para você, esta quentinho – disse satisfeita
- Vovó, você é a melhor. Sabe que eu te amo, né?
- Isso é por ter deixado você sozinha ontem também. Uma forma de me desculpa.
- Esta mais do que desculpada vovó – disse lambendo os lábios.
Comecei a me servir. Cortei um pedaço enorme e coloquei no meu prato. Vovó colocou enchei um copo de suco de cajú e matei totalmente minha vontade. Estava tudo muito bom, fui ao céu e voltei.
- Vai comer não? - perguntei.
- Vou sim – disse me olhando comer. Logo em seguindo cortou um pedaço para ela e me acompanhou na “degustação”.
- O que minha mãe queria? - perguntei, enquanto comia.
- Ela queria saber como você esta... se chegou bem. Ela me disse que você não queria comer, que não estava falando. Acho que enviaram a garota errada pra cá.
Eu rir. Já era meu terceiro pedaço.
- Deve ser... - parei um pouco pra pensar – eu sinto dó da minha mãe, mas a culpa não é dela, não é de ninguém de casa... sabe vovó. Eu apenas não conseguia imaginar, minha casa... meu quarto e tudo que vivi com Ricardo ali. Eu me sinto culpada e ainda não estou nada bem, mas aqui. Eu não sei direito, mas estar aqui me faz muito bem.
- Que bom meu amor, você veio para cá para isso mesmo.
Sorri.
Ficamos em silencio um instante, enquanto comíamos.
- E ontem, como você veio para casa? Seguiu o mapa da lanchonete – perguntou vovó.
- Ah claro! - fiz uma careta irônica – um mapa chamado “caminhonete do senhor Silva”.
- Como assim?
- O senhor Silva me deu uma carona. Deixamos o Lano na igreja e ela me deixou aqui.
- Hum, entendi. - ela pensou um pouco e começou a mexer no bolo em seu prato – Lano, aquele garoto é muito bom. Ele vai vir aqui hoje a tarde, vamos jogar dominó.
- Você ainda joga vovó?
- É claro, aqui na cidade não tem quem não jogue.
- E eu posso jogar com vocês?
- É claro meu bem, logo após você me ajudar a catar manga no quintal para fazer suco.
- Ta bem – sorri.
Catar manga era a coisa mais engraçada de se fazer ali. Alguns pés de manga eram baixos e podíamos apenas estender a mão e pegar. Outros eram mais altos e para isso servia o pegador de manga da vovó. Era um cano de água, com um litro de garrafa de refrigerante cortado de cabeça para baixo na ponta, colado por um durex.
O pé estava carregado e passamos o dia ali. Após enchermos os baldes de manga, chupamos algumas enquanto deitávamos na rede que ela tinha na varanda e contava meus casos dos últimos anos. Até eu pegar no sono e dormi ali mesmo. Com aquela brisa no rosto, no balançar da rede.
Ao contrario do que eu imaginava, vovó não correu atras de mim. Na verdade ela quis mesmo me deixar sozinha, fiquei bastante tempo ali no sofá esperando alguma movimentação, porém nada. Liguei a televisão e fiquei trocando de canal, eu não gostava de televisão, porém naquela ocasião ficar trocando de canal era a única coisa ali para se fazer. Para fora eu não voltaria.
Acordei em um silêncio maravilhoso. Que me deu ainda mais vontade de ficar ali deitada. Demorei alguns momentos para perceber que não estava sozinha. Vovó jogava dominó com Lano em uma pequena mesa próxima a mim. Fiquei sem jeito ao perceber que ainda estava com roupa de dormir, próxima a um garoto que eu mal conhecia.
- Que bom que acordou Pi, achei que não acordaria a tempo de jogar uma partida com a gente – dizia vovó ainda concentrada.
- São que horas? - perguntei meia desnorteada.
- Já passou das 18 horas – respondeu vovó.
- Caraca, eu dormir isso tudo?
- Estava tão quieta que nem percebi que estava ai – disse Lano sorrindo. Ele estava com aquele óculos ainda e não estava com o uniforme da lanchonete. Ate que estava vestido como povo da roça, ele tinha estilo. Admito.
- Estava nada, ela roncava – disse o garoto que também estava na mesa, porem não conseguia velo devido ao seu tamanho. Devia ser uma criança.
- Fica queto Dimi – repreende Lano – Desculpe Pietra, este é meu primo Dimitri. Ele esta aprendendo a ter modos.
- A sim tudo bem! - disse sem sorri encarando o garotinho.
- E o sax... - apontou o garotinho.
- Quem é Sax? - me levantei olhando, porém não havia mais ninguém na mesa. Então de repente uma bola de pelos pulou em cima de mim, me derrubando no chão. Eu tentei tira-lo de cima de mim, porem ele parecia empolgado em me lamber. Acho que ele imaginou que eu teria um chocolate na cara ou um pirulito. Minha cara nem era tão redondinha para isso.
- Sai, Sai – gritei.
- Sax, olha os modos.. você não esta em casa garoto – disse Lano, que ao chama-lo o cão foi ate ele receber carinho.
- Como deixam solto um bicho deste tamanho? - disse enquanto levantava.
- Sax é conhecido por todos, ele não age dessa forma com ninguém, essa foi primeira vez. Deve ser porque você é nova, ele estava te conhecendo.
- Me degustando com sua língua... isso que é conhecer para os cachorros?
- Pietra... - me repreendeu vovó.
Olhei para ele, discordando e sentando na cadeira vazia.
- Vamos começar uma nova rodada... pode pegar suas sete peças.
Vovó embaralhava as peças no centro da mesa. Olhei para ela, enquanto via fazendo aquilo.
- Você sabe jogar.. não sabe? - disse enquanto pegava suas peças.
- É claro que sei.
Escolhi minhas peças e tinha um bom jogo. Estava com a bucha de 6 e comecei a partida.
Devo admitir que meu adversários eram muito bons, porém no fim quem ganhou a manga de ouro foi Lano. Mesmo com aqueles óculos escuros que ele nunca tirava – o que me intrigou se ele não havia roubado devido a isso. Mas pensando bem não tinha muito a ver, ele deveria é ter perdido não ao contrario – ele soube jogar muito bem.
Depois de comer um doce que vovó havia feito com as mangas de logo cego, ficamos na varanda “proseando” como dizia vovó. Conversamos sobre vovó e sobre minha infância quando vinha na fazenda. Dimi ficou o tempo todo brincando com sax. Logo em seguida, comecei a contar meus casos de escola e que odiava quando as crianças tinha que levar seu animal de estimação e eu não tinha nenhum.
- HAHAHA . Mas é verdade. Eu era muito anti-social...
- Você era? - indagou vovó.
Encarei ela com o olhar ríspido.
- Sim era, não sou mais.
- Pra mim ainda continua... - provocou ela.
- Vovó você sabe muito bem meus motivos. Não precisamos falar desse assunto.
- Se o empecilho for eu, eu posso sair – disse Lano.
- Fica – disse em tom alto.
- É porque ela não gosta de tentar tratar a ferida... prefere ignora-la.
- Vovó...
- Que ferida? Você esta machucada? - perguntou Lano preocupado.
- É claro que não... - Aquilo estava começando a me irritar.
- Mas sua vó falou...- ele olhava desnorteado, mas todos os lados.
- Calma Lano – dizia vovó – ela não esta machucada fisicamente e sim interiormente.
- Então é ainda mais grave?
- Sim. É como aprendemos Lano, cura interior é a que mais dói, mais faz sofre e a que leva mais tempo para ser tratada, porem muitos se acomodam e começam a fingir que ela não esta ali, porém quando ela é tocada, a dor novamente vem a tona.
- Eu entendo muito bem disso – ele virou seu rosto para mim – Se quiser poder conversar comigo Pietra. Estou aqui para te ajudar.
- Eu não preciso de ajuda. - me levantei irritada e corri para dentro de casa. Sentei no sofá e voltei meus pensamentos ao motivo principal de eu estar ali. A morte de Ricardo e o nosso funeral.Ao contrario do que eu imaginava, vovó não correu atras de mim. Na verdade ela quis mesmo me deixar sozinha, fiquei bastante tempo ali no sofá esperando alguma movimentação, porém nada. Liguei a televisão e fiquei trocando de canal, eu não gostava de televisão, porém naquela ocasião ficar trocando de canal era a única coisa ali para se fazer. Para fora eu não voltaria.
Ate eu ouvir passos em direção a sala. Deixei a televisão ligada em um canal de animais e me fixei nela fingindo estar interessada, ignorando quando vovó e Lano passaram. Eles conversavam sobre Lano dormir la, aquela noite. Lano estava meio sem jeito e depois de muito insistência aceitou.
Ela subiu ate o quarto e desceu trazendo o travesseiro e alguns cobertores. Me levantei e fui ate a cozinha para ver se ela dizia algo e deu certo.
- Estou indo dormir Pietra, o Lano vai dormir na sala, mas ele não se importa com sua presença então também não se importe com a dele. Amanha conversamos melhor.
- Tudo bem vovó, boa noite.
- Boa noite minha linda, ate logo mais.
Fui na cozinha, abri a geladeira e peguei um copo de água. Vi que Lano estava parado próximo a escada e o chamei. Ele veio ate a mim e ficou parado olhando para o nada. Ele continuava com os óculos escuros, mas me segurei e não disse nada. Apenas fui agradável e ofereci um copo de água.
- Muito obrigado – disse ao pegar o copo.
- Então vai dormir aqui esta noite?
- Sim, meus tios tiveram que viajar para outra cidade...
- E seu primo?
- Ele é filho de outra tia...
- E porque não dormiu lá?
- Porque gosto de dormir aqui na casa da sua vó e ela insistiu muito também.
- Você dorme muito aqui?
- Aonde você quer chegar com essas perguntas?
- Não sei, me diga você.
Ele riu.
- Vocês da cidade são estranhas mesmo.
O Encarei por alguns momentos.
- Nós somos estranhas?
Ele assentiu.
- Não sou eu que em plena 22:00 horas, estou usando óculos escuros dentro de casa.
Ele riu.
- Já são 22:00?
- Uhum!
- Jura que eu não percebi...
- Na verdade eu acho que você nunca percebe, né? Você nunca tira esses óculos...
- Então você percebeu?
- Quem não percebe? Quer chamar atenção, tente outra coisa meu amigo.
O deixei na cozinha, fui para sala e sentei no sofá. Logo em seguida, ele se sentou do meu lado.
- De onde tirou a ideia de que quero chamar atenção?
- Vejamos?! O garoto bonzinho que ajuda os tios na igreja, trabalha em uma lanchonete, joga dominó e dorme certas noites na casa de uma viúva senhora gentil. Usa um óculos estranho e tem uma boa e agradável conversa. Por favor né?
- Você é mesmo bem observadora... mas isso todo mundo já sabe... todos vêm que sou assim.
- A é? E o que as pessoas não vêm?
- A pergunta certa seria, o que eu não vejo?
Ele tirou o óculos e havia cicatrizes. Seus olhos eram azuis e profundos. Mas nada me tirou mais a atenção, do que vir a tona de onde aquele rosto que me era familiar. Meus olhos se encheram de lagrimas e ao mesmo tempo ódio. Como eu poderia me esquecer dele? Como poderia me esquecer daquele rosto e principalmente... daqueles olhos.
- Eu não preciso chamar atenção Pietra, e por não ter falado nada, devo imaginar que consegui responder suas perguntas – disse sério.
- Lucas? - gaguejei.
- Olá, Pietra! - vi um sorriso no canto de sua boca.
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